Toda vez que ficamos chocados com uma nova atrocidade terrorista, ou quando uma onda de crimes de ódio toma conta de um país, lamentamos o domínio maligno do extremismo. Mas o que exatamente queremos dizer quando dizemos que alguém tem crenças extremas? E o que exatamente há de errado com crenças extremas? Francamente, tem havido pouco trabalho na filosofia ocidental para lidar com essas questões. Felizmente, no entanto, podemos olhar para o trabalho de um filósofo islâmico medieval – Abu Nasr al-Farabi – para nos ajudar a encontrar algumas respostas.

Vamos considerar dois modelos possíveis para conceituar a crença extrema. Um que poderíamos chamar de “modelo da crença defeituosa” que se tornou a visão de consenso tácita do Ocidente contemporâneo. O outro é o “modelo de crença excessiva” defendido por al-Farabi, uma das grandes figuras da era de ouro da filosofia islâmica medieval, que viveu em Bagdá entre os séculos IX e X. Al-Farabi é bem conhecido por suas contribuições para a lógica – seus contemporâneos deram-lhe o apelido de “o Segundo Mestre”, sugerindo que apenas Aristóteles superou suas proezas lógicas. Na Europa, ele era mais conhecido como Alfarabius.

Quero fazer alguns pontos conceituais contra o modelo ocidental de extremismo e alguns a favor de al-Farabi.

Vamos começar dando uma olhada na ideia de crença defeituosa. Sob uma versão desse modelo, alguém tem crenças extremistas quando acredita em proposições que são moralmente ruins de se acreditar, como que o racismo é permitido ou que é permitido atacar não-combatentes durante a guerra.

Mau crente

O problema com essa visão é que não temos o mesmo tipo de controle sobre nossas crenças que temos sobre nossas ações. Suponha que alguém se ofereceu para lhe dar um milhão de reais para levantar seu braço direito agora (supondo que você tenha um). Tente fazer isso. Você pode. Mas agora suponha que alguém lhe fez a mesma oferta para acreditar que você é um gafanhoto gigante. Tente acreditar. Você não pode.

Mas então parece que não existem crenças moralmente defeituosas. Isso ocorre porque só podemos ser responsabilizados moralmente por coisas que estão sob nosso controle. Por exemplo, parece loucura para mim culpá-lo, leitor individual, pelas últimas chuvas de monção na Índia, dado que o seu acontecimento foi algo que você não pode controlar.

Poderíamos então fazer a seguinte modificação (permanecendo dentro do modelo): o que há de defeituoso no extremismo não tem a ver com a moralidade, mas com as crenças dos extremistas que estão totalmente em desacordo com nossas evidências. Podemos então acreditar que alguém que não acredita nas mudanças climáticas, ou que acredita que a Terra é plana, é tão extremista quanto alguém que acredita que os não-combatentes são alvos legítimos durante a guerra.

Mas o problema é que, se as crenças extremistas são apenas crenças que estão muito fora de ordem com as evidências, então o que, precisamente, há de extremista nelas? Se eu estava totalmente convencido de que tinha alimentado o gato esta manhã, contra a evidência de uma lata cheia de comida de gato e um animal furioso, isso me torna um extremista? Eu acho que não.

Além disso, há a questão de determinar quais são as evidências disponíveis. Algumas pessoas podem ter o que consideramos visões extremas, mas apenas por falta de acesso a evidências-chave (talvez tenham sofrido lavagem cerebral ou “radicalizadas” pela recusa de acesso a essas evidências). Seus pontos de vista podem estar de acordo com as evidências disponíveis para eles, mas isso nos impede de identificar seus pontos de vista como os de um extremista?

Questão de graus

Então, e aquele modelo de “crença excessiva”? Suponha que as crenças possam vir em graus: que alguém possa ter uma crença mais forte de que o Manchester United permanecerá na Premier League na próxima temporada do que de que a vencerá. Seguindo a matemática Baysiana, podemos atribuir uma gama de valores de 0,1 a 1,0 para tentar modelar os vários graus de crença. Eu poderia, então, ter 0,8 grau de crença de que o Manchester evitará o rebaixamento, mas apenas 0,6 grau de crença de que eles vencerão. A questão é o que constitui a crença “plena”?

Uma resposta tentadora é que é certeza absoluta – 1,0. De acordo com o modelo de crença excessiva de extremismo, no entanto, é mais como 0,8. Qualquer coisa acima disso é, exceto em circunstâncias muito incomuns, ter muita credibilidade na crença de alguém. Em outras palavras, quase sempre devemos permitir pelo menos alguma pequena possibilidade de estarmos enganados – a certeza absoluta é quase sempre problemática em relação à nossa evidência. Acreditar com absoluta certeza, de modo que nada possa nos persuadir do contrário – acreditar demais – é ter uma crença extrema.

Essa maneira de pensar sobre isso contorna o problema de atribuir responsabilidade moral às nossas crenças. Crenças extremas são consideradas problemáticas em relação à evidência – e não a algum padrão moral. Também identifica algo distinto que todas as crenças dos extremistas possuem e, portanto, as diferencia das crenças não extremistas que apenas se chocam com as evidências disponíveis.

Algo pelo menos próximo dessa visão pode ser encontrado nos escritos de al-Farabi. Em um ensaio, ele identifica um estado intermediário de conhecimento entre a plena certeza e uma espécie de niilismo cético. E ele argumenta que, como apenas o Profeta está em uma posição em que pode obter plena certeza, o resto de nós, mortais, precisaremos aprender a viver com um estado de conhecimento menos perfeito.

Al-Farabi era conhecido por suas contribuições para a lógica, mas também era muito conhecido, especialmente no mundo islâmico, por seu trabalho em filosofia política – conectando problemas filosóficos com ideias práticas. A  Al-Farabi Kazakh National University in Kazakhstan, no Cazaquistão, por exemplo, instituiu recentemente um projeto destinado a usar os ensinamentos de al-Farabi sobre a cidade-estado ideal como um modelo para a governança da universidade. Seus ensinamentos carregam consigo muita influência na política do mundo islâmico contemporâneo – especialmente devido ao status especial que o mundo islâmico atribui à idade de ouro medieval do Islã.

E para al-Farabi, acreditar com absoluta certeza é apresentar-se como possuidor de um estado de conhecimento disponível apenas para profetas e para Deus. Ser um extremista é, então, defender a idolatria e, até mesmo, o politeísmo. E de acordo com a profecia, é claro, uma das vocações centrais de Muhamamd era purificar Meca (e o mundo) desses ídolos.

Fonte: theconversation.com